'Brasil é um grande alvo', diz jornalista sobre vigilância dos EUA

Documentos revelados neste fim de semana mostram que o governo dos Estados Unidos espionou milhões de telefonemas e emails de brasileiros. A notícia põe o Brasil como mais uma conexão da rede de espionagem americana no mundo, que vem sendo denunciada pelo ex-técnico da agência de segurança nacional dos Estados Unidos Edward Snowden.

A informação, manchete da edição deste domingo do jornal "O Globo", foi obtida por um jornalista que recebeu os documentos e vem divulgando todas as denúncias de Snowden. O jornalista se chama Glenn Greenwald, mora no Brasil e foi entrevistado pela repórter Sonia Bridi.

Numa casa cercada de verde, no Rio de Janeiro, o jornalista americano Glenn Greenwald, que escreve para o jornal inglês "The Guardian", desvenda aos poucos os cinco mil documentos que estão abalando o governo Obama e as relações diplomáticas americanas com vários países. Greenwald mora no Brasil há oito anos.

Ele recebeu os documentos de Edward Snowden, um ex-técnico de uma empresa contratada pela NSA, a agência de segurança nacional dos Estados Unidos.

“Ele estava sendo treinado para saber como invadir os sistemas do outro país. E também ele está cuidando do sistema americano. Ele foi autorizado para saber muitas coisas que o governo está fazendo. Ele me mandou um e-mail em dezembro de 2012 falando que ele tinha documentos”, conta Greenwald.

Quatro meses de conversas pela internet até marcar o encontro pessoal. Foi no começo de junho, em Hong Kong.

“E o primeiro dia quando cheguei a Hong Kong, eu o encontrei no hotel onde ele estava ficando e ele me deu um "pendrive" com dois mil documentos mais ou menos. E eu não dormi naquela noite e comecei escrevendo os artigos quase que imediatamente", recorda.

Foi só o começo. Nestes pendrives - que tem cópias em lugares seguros – estão, ao todo, cinco mil documentos que Snowden entregou a Greenwald ao longo de 11 dias.

Fantástico: E quantas vezes você encontrou com ele nesse período de Hong Kong?
Greenwald: Todo dia. Todo dia ficamos juntos por cinco, seis, sete horas.
Fantástico: Ele tinha consciência de que depois de entregar esses documentos ele seria um homem procurado no mundo inteiro?
Greenwald: Com certeza.

No quarto de hotel em Hong Kong, Greenwald gravou uma entrevista com Snowden. Ele explica por que decidiu divulgar a rede de espionagem americana.

“Quando você vê toda a informação, você percebe que algumas dessas coisas são abusivas. Sou só um cara normal que senta todos os dias para trabalhar, vê o que acontece e pensa: "Eu não estou em posição para decidir, o público precisa decidir se usar esses programas é correto ou não", disse Snowden na entrevista.

De volta ao Rio, Greenwald garimpou os arquivos. Há um mês, publicou no "The Guardian" os documentos mostrando como a NSA espiona os cidadãos americanos, coletando bilhões de dados de ligações telefônicas e comunicações via internet.

Em seguida, foi a vez de mostrar como a NSA espiona outros países. China, Alemanha, França. Houve uma reação internacional. Os americanos pediram ao governo chinês a extradição de Snowden, acusado de traição.

Fantástico: Quando foi o último contato de vocês?
Greenwald: O dia que ele saiu Hong Kong. Eu não falei com ele desde aquele dia.

Snowden conseguiu embarcar para a Rússia e estaria há mais de uma semana na área internacional do aeroporto de Moscou, esperando asilo político em algum país.

Fantástico: Você acredita que ele está mesmo na Rússia?
Greenwald: Eu não sei, mas eu acho que sim.

Nesta semana, o presidente da Bolívia, Evo Morales, voltava para casa depois de uma visita à Rússia. Alguns países europeus proibiram que o avião presidencial sobrevoasse seus espaços aéreos. Morales foi forçado o pousar na Áustria, quase sem combustível. Tudo porque havia a suspeita de que Snowden estivesse a bordo. O presidente Morales só pode retomar a viagem depois de 13 horas na Áustria.

E agora os documentos vazados por Snowden apontam que o Brasil também é alvo da espionagem americana.

Fantástico: Os brasileiros também estão sendo espionados?
Greenwald: Com certeza.  Muitas. O governo americano está fazendo espionagem para todo mundo. Mas com o Brasil tem várias razões, que é um alvo grande. Eles estão coletando uma quantidade muito grande desse país - o sistema brasileiro. Eles estão coletando mais do que quase outro país, mas com certeza do que outro país da América Latina, mas quase mais do que todos os outros países no mundo todo. Sem discriminação. Todo dia tem milhões de e-mails e milhões de ligações que eles estão coletando. Informação para quem você ligou, quem está ligando para você, para quem você está mandando e-mail, recebendo e-mail, quanto tempo você está falando. Eles estão manipulando o sistema brasileiro e temos muitos documentos que mostram isso.

Os documentos foram publicados na edição deste domingo do jornal “O Globo”, em reportagem assinada por Roberto Kaze, José Casado e o próprio Glenn Greenwald. E mostram que milhões de brasileiros ou estrangeiros em trânsito pelo Brasil, além de empresas instaladas aqui, se tornaram alvo da espionagem da NSA.

Não há evidência de que as conversas tenham sido ouvidas - que houve grampos a pessoas específicas. Mas é um registro massivo de ligações - o número que chamou, o número chamado, o tempo da ligação e, se for de celular, onde cada um estava no momento da conversa. No caso de comunicação por email ou redes sociais, fica registrado também o número do IP - a identidade do computador. Assim, a agência, se quiser, pode invadir o computador e retirar todas as informações armazenadas nele.

Documentos super secretos mostram onde estão instalados, pelo mundo, os sistemas de monitoramento de um programa batizado de X-Keyscore. Um mapa da NSA confirma que o Brasil está entre os países espionados por esse programa, que detecta a atividade de estrangeiros no país, através do idioma usado na comunicação - por telefone ou email.

Mas afinal, por que os americanos vigiam tanto o Brasil? Uma explicação pode estar na maneira como comunicação trafega pelo mundo.

Greenwald: Não temos acesso ao sistema da China, mas temos acesso ao sistema do Brasil. Então estamos coletando o trânsito do Brasil não porque queremos saber o que um brasileiro está falando para outro brasileiro, mas porque queremos saber que alguém na China está falando com alguém no Irã, por exemplo.

“Qualquer analista, a qualquer momento, pode espionar qualquer pessoa em qualquer lugar. Sentado na minha mesa, eu tinha a capacidade de grampear qualquer um, desde você até seu contador, até um juiz federal ou o presidente”, revelou Snowden, na entrevista a Greenwald.

Com outro programa de espionagem, chamado de Prism, a NSA acessa os servidores de grandes empresas de internet no mundo, como Google, Facebook e Skype. Nos Estados Unidos, as três empresas disseram que só fornecem informações ao governo sob ordem judicial.

“Temos uma lei que fala: o governo americano não pode coletar informação, ou comunicações, dos americanos sem um tribunal. Então, se eles querem coletar ligações, e-mails, dos americanos ou cidadãos americanos, eles precisam ir para tribunal mostrar evidência que a pessoa é suspeita de estar trabalhando com terroristas. Para estrangeiros, todas as outras pessoas no mundo que não são americanos, eles não precisam de nenhuma permissão do tribunal”, explica Greenwald.

Os documentos não deixam claro quantas e quais empresas de telecomunicações brasileiras têm seus dados sendo redirecionados pelas empresas americanas para a central de operações da NSA. E nem se essas empresas brasileiras sabem que isso está acontecendo.

As empresas brasileiras de telefonia e internet têm parceria operacional com as americanas - isso é normal, permite ligações internacionais, por exemplo. Mas segundo Greenwald, permite acesso das empresas americanas aos dados do sistema de comunicações do Brasil. Dados que estariam sendo transferidos para a NSA.

A central da NSA, que fica em Utah, nos Estados Unidos, armazena os dados por um ano, segundo Greenwald.

Fantástico: Eles podem, por exemplo, fornecer dados sobre uma empresa brasileira para um concorrente americano?
Greenwald: Por exemplo. Ou também, por exemplo, se você é jornalista, você começa fazendo investigação sobre o governo dos Estados Unidos. Eles podem a qualquer hora invadir o seu computador. Se você pergunta ao governo americano sobre qualquer coisa que eles estão fazendo em segredo, eles vão sempre falar: estamos fazendo isso porque queremos proteger nossos cidadãos contra terroristas, queremos saber o que as pessoas más estão fazendo. É a desculpa que eles usam para tudo.

Nos mapas da NSA, vazados por Snowden, que ilustram com cores a quantidade de mensagens e ligações rastreadas, o Brasil aparece em vermelho. O Brasil é o mais vigiado da América Latina. Estes mapas trazem a data de março deste ano. O Brasil está atrás apenas dos Estados Unidos, que teve dois bilhões e 300 milhões de mensagens e ligações interceptadas. 

Fantástico: São milhões de dados gerados todos os dias. A gente viu, por exemplo, o caso do atentado em Boston. Apesar de eles terem um aviso do governo russo de que um suspeito estava envolvido com grupos terroristas, eles não foram capazes de seguir e impedir que esse atentado acontecesse. Qual é a capacidade de análise realmente e de ação a partir desses dados?
Greenwald: É um pouco irônico, porque o problema foi que eles tiveram informação demais e eles não podem conectar essa informação. Porque eles não conseguiram ler todas as coisas. Você tem bilhões de e-mails todos os dias, como eles estão gravando agora. É impossível saber exatamente o que você está coletando. E para mim é muito claro que o objetivo não é para impedir o terrorismo, mas para aumentar o poder de governo americano.

Ainda há muitos documentos vazados por Snowden. Alguns serão publicados pelo jornal O Globo numa nova reportagem nesta segunda-feira. O próprio Greenwald ainda não pode avaliar o teor de todas as informações que recebeu de Snowden. Mas sabe que elas são suficientes para que o governo americano se esforce  para botar na prisão o técnico que trabalhava para a NSA, a agência de segurança nacional americana, e que hoje é considerado pela Casa Branca um traidor da pátria.

Fantástico: Ele está preparado para se esconder durante muito tempo?
Greenwald: Ele é preparado para esconder, ele é preparado para morar em outro país, ele é preparado para ficar o resto da vida dele na prisão.
Fantástico: Na prisão também.
Greenwald: Com certeza. Ele sabe que é um risco muito grande.

G1